Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

sexta-feira, abril 29, 2005

“Passa para aqui o telemóvel ou chino-te todo!”

O meu filho mais velho, o Gonçalo, e um colega de turma, vizinho e amigo, o Raimundo, foram assaltados ao fim da manhã de hoje. A uns 200, 300 metros da escola, quando iam para casa, numa das mais movimentadas ruas do Grande Porto. O método não foi além do clássico navalha no pescoço e “passa para aqui o telemóvel ou chino-te todo!”. E, de uma assentada, foram dois...

Estamos todos fartos de ler coisas semelhantes nos jornais, alguns, como eu, até já nem têm paciência para parar os olhos nesse noticiário, mesmo depois de terem vivido experiências do género. Sim, porque também eu já fui assaltado...

Imagino o susto que os miúdos apanharam – ainda mais o Raimundo, aflito com a asma com que teve de se habituar a viver –, os minutos de pânico com o frio da lâmina encostado à carne, o medo a paralisar-lhes os músculos e o raciocínio, as imagens dos filmes de acção, de ataque e de defesa, ainda mais rápidas que as do “Matrix”.

A sensação de impotência é forte, demasiado forte, face a esta pequena delinquência que rasteira o dia-a-dia tranquilo a uns quantos putos por causa de uma simples dose para a veia. O horror pela situação é grande. Mas agora, passadas umas quantas horas, só posso sorrir, porque tudo acabou bem: os miúdos reagiram da única forma possível para se defenderem – “okay, leva lá esta porcaria e larga-me mas é o pescoço”!

Desculpem a emoção do textinho para consumo caseiro, mas quem tem filhos tem destas coisas!

E, mais logo, claro está!, lá vou eu tentar comprar dois telemóveis em segunda mão...

sábado, abril 23, 2005

O Mar e a Praia

O mar e a praia estão sempre perto um do outro.
Querem ambos aprender a falar, aprender a dizer
uma única palavra. O mar quer dizer “praia”
e a praia “mar”. Cada vez estão mais próximos
da fala, depois de milhões de anos, de dizerem
aquela palavra solitária. Quando o mar disser “praia”
e a praia “mar”,
a redenção virá ao mundo,
e o mundo retornará ao caos.

Yehuda Amichai (1924-2000)

quinta-feira, abril 21, 2005

Dia Mundial do Livro

O Dia Mundial do Livro é no próximo dia 23, sábado, mas pode começar já a celebrá-lo. Pelo menos, uma vez na vida, de forma diferente. Sugira um, vá lá

terça-feira, abril 19, 2005

NewsFeeder

NewsFeeder! Não está mal visto, não senhor...

À mulher de César não basta parecê-lo...

Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, aceitou um convite para férias de "um velho amigo". À mulher de César não basta parecê-lo...
Curioso é que não é a primeira vez que as férias dão problemas ao homem. Já quando era primeiro-ministro, uma passagem por Angra dos Reis (Brasil) trouxe-lhe uns amargos de boca... Alguém se recorda?

Contra a ditadura dos tempos modernos?

Não tenho qualquer autoridade em matéria de fé e religião, mas com a escolha de Joseph Ratzinger para papa salta-me à cabeça uma frase lapidar do cardeal alemão na última homilia celebrada antes do conclave: “O novo papa deve lutar contra a ditadura dos tempos modernos”. Uma ideia precisa que anunciava, já no começo da semana, um assumido combate à modernidade e a tudo o que ela possa conter, um retrocesso no ecumenismo. Em síntese, uma desilusão profunda para os que, acima de tudo, acreditam no diálogo.

segunda-feira, abril 18, 2005

Vem, cacimbo

Estende teus dedos anelados sobre a minha carapinha
derrama a tua inconsciente tranquilidade
sobre a minha angústia submergida.
Vem, cacimbo
eu quero ver os cafeeiros ao peso dos bagos vermelhos
endireita os troncos vencidos dos bambus
coroa os cumes altos das serras do Bailundo
limpa a visão empoeirada dos comboios que descem para Benguela
nimba poeticamente os horizontes dos camionistas de Angola.
Vem, cacimbo
debruça-te cuidadosamente sobre as plantas da madrugada,
destrói a angústia resignada das gentes da minha terra
abre-lhes os horizontes dos cantos de esperança.
Vem, cacimbo
Derrama a tua inquieta saciedade sobre a minha natureza
a esta hora empoeirada com o barulho das esquinas
com o cheiro a óleo sujo dos automóveis
e com a visão daquele nosso amigo
cujo ordenado são quinze escudos diários
irremediavelmente caído sobre a grama do jardim
O cacimbo
eu quero percorrer teus campos sossegados
orquestrados pela alegria do beija-flor.

Henrique Guerra, in "Poetas Angolanos", 1962

sexta-feira, abril 15, 2005

A verdadeira história de Lânguida, Lascívia e Luxúria

Lânguida, Lascívia e Luxúria chegaram a casa vindas da festa dessa noite cansadas, febris e esbeltas como nunca. Lânguida mergulhou directamente no sofá da sala e espreguiçou-se com um prazer sonoro. Lascívia, agitada, soltou as amarras do coração e sonhava com uma madrugada de amor até à exaustão. Luxúria correu para o espelho do guarda-fatos e mirou e remirou com prazer a imagem de Cinderela.

A ronronar pela satisfação da inércia, Lânguida bebeu lentamente o vinho verde branco que Lascívia lhe oferecera num copo gelado, levantou a custo as pestanas para a televisão desligada e agradeceu, em silêncio, a música delicodoce que Luxúria colocara no ar.

Agitada sem nervosismo, Lascívia sentia-se bela e trocou o vestido da noite por uma camisa de dormir resplandecente e sensual, mas manteve calçadas as botas que lhe cobriam os joelhos quase até à delicada barra rendada onde morriam as meias de cetim brilhante, oferta de um antigo amante das mil e uma noites.

Obviamente feliz, Luxúria soltou um gemido de prazer e acendeu a luz do candeeiro do quarto, regressou ao espelho e sorriu, sorriu tanto que decidiu, por puro prazer, retocar a cuidadosa maquilhagem feita expressamente para a festa dessa noite.

Duas horas depois, Lânguida, Lascívia e Luxúria continuavam nestes preparos. Lânguida saboreava com conforto o seu vinho, Lascívia apurava diferentes combinações para a sua roupa íntima e Luxúria aprimorava o seu belo corpo.

Três dias e três noites mais tarde, Lânguida continuava plácida no seu posto. "Estão tolas", pensou. Lascívia insistia numas meias brancas de renda, que se ajustavam na perfeição ao castanho avermelhado dos lábios. "Agora sim, estou uma mulher sensual", disse para si. Luxúria, finalmente, acertou nos cuidados que apurava há anos. "Sinto-me bela", falou com o espelho.

Nesse instante a campaínha tocou. Lânguida deixou-se estar, Lascívia correu a compor-se e Luxúria caminhou determinada para a porta. "Quem será?", perguntaram as três. Uma figura humana, com tanto de atraente como de repelente, dado o seu tom de pele levemente esverdeado, indagava pelas amigas do príncipe encantado!

Luxúria convidou o homem a entrar e o conhecido do príncipe encantado avançou. "Nunca em toda a minha vida tinha visto uma mulher tão bela, os meus sinceros parabéns", soltou com um olhar de espanto. Luxúria emudeceu daquela vez sem exemplo e Lascívia entrou, finalmente, na sala. "Boa noite, meu caro senhor, que o traz por cá", perguntou enquanto simulava um subtil desafio de ancas. As articulações do queixo pendiam para sul e o homem viu-se impedido de dizer fosse o que fosse. O embargo não o impediu, no entanto, de desviar o olhar para o sofá, onde Lânguida seguia os seus movimentos com atenção.

"Fui incumbido da delicada missão de encontrar as amigas do príncipe encantado. Sois, por acaso, vós?".

Lânguida nem se moveu, Lascívia procurou resposta apropriada e Luxúria recuperou a voz. "Claro que somos nós", avançaram em coro, "estávamos precisamente à espera do príncipe".
O homem suspirou profundamente e pediu às três amigas que se sentassem, que tinha uma importante comunicação a fazer-lhes. Lado a lado, Lânguida, Lascívia e Luxúria entreolharam-se.

"O príncipe encantado sou eu, Leonardo de baptismo", começou o homem. "Procurei anos a fio a minha princesa, andei por este horizonte, aqui e de além mar, mas, agora, perante tão majestosa visão, confesso-me impotente para tomar uma decisão lógica, como mandam anos e séculos de história. Por isso, proponho casar-me com as três e das três farei donas e rainhas do meu reino. Que dizem?"

Luxúria aplaudiu, Lascívia mordiscou com um sorriso os lábios e Lânguida ergueu-se. "Eu aceito". "Que festa vai ser". "Estou encantada".

Saíram a trote para o castelo do príncipe Leonardo no dorso de um lindo unicórnio branco. Ah!, e foram felizes para sempre.

quinta-feira, abril 14, 2005

Aguinaldo

Aguinaldo Vera-Cruz é um bom site para repousar os olhos. Passe por lá e deixe-se ficar por um bocado. A meio da tarde, é bem melhor que um ansiolítico...

Bom rapaz, amigo

O POS é bom rapaz, amigo, e só por isso não lhe a mal a maldade de andar a escrever na Fonte das Virtudes coisas íntimas que, apesar de tudo, descansavam tranquilamente a coberto do anonimato de mais um nome numa folha de jornal. Quanto às causas, bom!, benevolência do POS, uma vez mais, porque se há alguém que defende realmente com empenho e afinco as suas causas é ele, ninguém mais! E não me esqueço das pelejas do tempo do Cerco do Porto, mesmo quando algumas dessas ideias, digo eu, até nem lhe ficavam lá muito bem. Como aquelas do Futebol Clube do Porto, que o deixavam (e continuarão a deixar...) completamente transtornado.

Atrevido

A manchete do DN de hoje tem o seu quê de peculiar, a avaliar pelo ocorrido no passado recente com várias personalidades da política cá do burgo. Independentemente das diferenças que existem consoante os casos, porque as há, a verdade é que o senhor director-geral dos Impostos pagou a Contribuição Autárquica dois anos atrasado, meio ano depois de ter assumido aquelas funções. E porquê? “Paguei quando fui lembrado para isso”, alega Paulo Macedo. A desculpa é tão atrevida e imoral que até dói, vinda de quem vem, claro. Moita!

quarta-feira, abril 13, 2005

Casa da Música

Ora aí está uma boa causa!

Critérios

Seis meses depois do registo do primeiro caso de febre hemorrágica provocada pelo vírus de Marburg, a Organização Mundial de Saúde (OMS) continua muito preocupada com a epidemia. Aliás, a OMS está cada vez mais preocupada com as duas centenas de angolanos que, entretanto, morreram. E até há em circulação comparações com o efeito do Ébola. É tudo facilmente compreensível e entendível. Louvável, até.
O que não entendo com a mesma facilidade é a razão pela qual a OMS – e toda a Comunicação Social, nacional e estrangeira – não revela, no mínimo, semelhante preocupação com as 100 mil crianças e as 1500 grávidas que, segundo a própria OMS, não resistem em Angola, todos os anos, ao paludismo (malária). Critérios, concerteza.

domingo, abril 10, 2005

Pecado original

Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito

Corsino Fortes, in “Claridade”, 1960