Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

terça-feira, fevereiro 06, 2007

"Histórias da Santa Madre", por César Príncipe *

RECORDAR A MULHER EM 11 DE FEVEREIRO



No dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, também se assinala o dia nacional da mulher. Dia interdito a comemorações quando por aqui vigorava, na máxima força, o macho latino e lusitano, nas ciências zoológicas classificável equídeo salazarense. A mulher beneficiou tanto ou mais com o 25 de Abril do que a classe operária e os assalariados rurais, do que qualquer dos protagonistas das revoluções igualitárias. A repressão sobre as mulheres, exercendo-se a nível político, acentuava-se também a nível da família, das convenções, do ensino, da religião, do emprego. O analfabetismo grassava e fazia parte de uma estratégia calculada, concertada ou espontânea mas que concorria para os mesmos objectivos e resultados: refrear a mulher, fonte do pecado original e animal doméstico por excelência. E o analfabetismo de múltiplos aproveitamentos assumia uma proporção mais massiva entre as mulheres. Eram, de um modo mais cerrado, desincentivadas de estudar, o que agravava o seu concurso e o seu desempenho no espectro das limitações e das oportunidades colectivas.

Mas o racismo uterino alastrava a múltiplos campos, desde logo, o da cidadania. Mesmo no quadro de um recenseamento expurgado e de fraude eleitoral, votar era privilégio de um gineceu cívico: o das proprietárias e licenciadas, então um pequeno estrato de portuguesas. Acrescia que as mulheres quase não ocupavam funções públicas, muito menos na esfera de representação do Estado. Por outro lado, não lhes concediam passaporte e só viajavam com autorização do consorte. Também eram vedadas ao género feminino certas ocupações ou restringidas a casos singulares nos mais diversos âmbitos: governo, autarquias locais, magistraturas, forças segurança, doutoramentos. Mulher de fábrica e de escritório tornaram-se modelos de promiscuidade e condição de estigma. As telefonistas e as enfermeiras foram tolhidas nas opções de casamento. Eram consideradas mulheres de risco. As professoras primárias eram empurradas para o nó com serventuários da máquina do Estado ou varões de fazenda.

Houve mesmo censuras sociais hoje da esfera do inconcebível: entrar num café denunciava um passo para a perdição. Sair à noite indiciava dormir com todos os conhecidos e desconhecidos. Pintar-se constituía sinal de conduta equivoca, próprio de mulheres de teatro. Usar calças ou fumar representava uma atitude subversiva. Expor mais uns centímetros de pele na praia poderia tirar a compostura ao País da Imaculada. Que imaculadas haveriam de apresentar-se ou aparentar-se as noivas, para o efeito amarradas até ao fim dos seus dias e arreadas com vestidos alvos e flores de laranjeira, já que Estado & Igreja haviam concordatado a interdição de divórcio. Depois, dentro do espírito dos altos valores da Nação, a membrana da Pureza tornou-se, na Política de Espírito do Estado Novo, uma instituição tão estimável e venerável como a Igreja, as Forças Armadas e o Dote.

A União Conjugal e a União Nacional completavam-se e emblematizavam-se na Trilogia Fascista: Deus, Pátria e Família. Em caso de adultério ou da mínima tentação da carne, do peixe ou da fruta, o marido passava por viril e a esposa por vil. Discriminação com fundas raízes. Até no seio da Nobreza as mulheres foram as últimas na linha dos títulos e as primeiras a ser deserdadas ou clausuradas em conventos e hospícios.

Mesmo na esfera eclesial, a mulher, laica ou membro de ordens monásticas, continua a desempenhar um papel secundário ou servil. Até nas insígnias mais elementares é patente a segregação e o ferrete: a freira usa aliança de comprometida, de noiva do Senhor, enquanto o padre ou o frade não usam anel de esponsal místico, sentindo-se solteirões livres, garanhões de Deus, dispensados de contrato virginal. Quanto à evolução geral dos costumes, foi fazendo caminho e evidenciando conquistas reais e formais mas os tutores e opressores não debandaram de vez. Buscam e buscarão sempre recuperar posições de domínio e predomínio.

A humilhação (pessoal, familiar, social, religiosa e jurídica) é uma das armas do machismo corrente e institucional. E muitas mulheres colaboram na sua degradação biológica, psicológica e afectiva sempre que se deixam enlear pelos argumentos do agente dominador e humilhador. Fenómeno de submissão e perversão que, à escala de outras culturas ou inculturas, por exemplo, as que praticam a excisão do clítoris (estimam-se em 150 milhões as mutiladas), se traduz no facto de serem mulheres a executar a norma incapacitante e seviciadora no interesse do egoísmo masculino e da ordem naturalizada.

Esperemos que, no próximo dia 8 de Março, o Dia Inter(nacional) da Mulher conte com mais um avanço civilizacional: A vitória do Sim no referendo de 11 de Fevereiro. Na realidade, pouco significado alcançarão as celebrações na boca de determinadas entidades e personalidades se a actual lei se mantiver, lei que protege o aborto clandestino e a fuga aos impostos, lei que mata dezenas de mulheres por ano, lei que ameaça as mulheres com prisão até três anos se não tiverem posses para uma escapadela a Espanha ou a uma clínica portuguesa segura e confidencial. Em Portugal, como é da sabedoria adquirida, à maneira dos estabelecimentos hoteleiros, também, no aborto, as opções marcam a condição económico-social das clientelas: há hospedarias de viela para as mulheres desafortunadas e hotéis de cinco estrelas para as senhoras de cartão dourado. Não querer ver também esta fronteira de estatuto só pode revelar uma imensa distracção ou uma rude hipocrisia.

Os distraídos ainda estão a tempo de se aperceberem do que está em jogo: deixar de criminalizar a IGV até às dez semanas e permitir o acesso a cuidados médicos especializados e legalizados às mulheres que optem por esse último recurso. Quanto aos hipócritas, não vale a pena perder tempo: é a profissão deles.









EURO-INTERRUPÇÃO



O país já alguma coisa saberá como irá o processo de euro-integração. E como iremos de euro-interrupção? Por exclusão de partes, neste ponto reflexivo, não nos centraremos em razões médico-psíquicas, riscos de saúde e vida da mulher, malformação do feto, violação e outros crimes sexuais. A nossa legislação já aceita alguns destes motivos, impondo uma barreira entre as doze e as vinte e quatro semanas. Embora mantenha demarcações temporais médias dentro dos meridianos europeus, também aqui subsiste um imperativo de poder: o consentimento dos pais para menores, mesmo em caso de risco da saúde e vida para a mulher, risco de saúde e de vida que também só pode ser legalmente prevenido na gravidez até doze semanas. Um arbítrio, por certo, eliminável numa próxima humanização legislativa. Uma democracia não deve consentir uma tirania paternal, que encubra o risco de aplicação da pena de morte. Faltará mesmo suscitar a inconstitucionalidade desta norma, cuja persistência nos remete para períodos bárbaros. Será outro combate das forças da tolerância.

Foquemos, pois, o panorama da euro-interrupção. Ei-lo, como amostragem: a pedido da mulher, até doze semanas, a interrupção é livre na Alemanha, na Bélgica, na Dinamarca, na Espanha, na Grécia, no Luxemburgo. Por razões económicas e sociais, até doze e vinte e quatro semanas, respectivamente, a interrupção é livre na Itália e na Grã-Bretanha. Por situação intolerável para a mulher, até vinte e quatro semanas, a interrupção é livre na Holanda, onde, já em 1971, foi aprovada uma lei do teor da que, no dia 11, será referendada entre nós. O membro mais irredutivelmente viril da Europa dos Quinze que, até agora, não tem legalmente permitido qualquer tipo de IVG, esteja em causa a vida ou a morte do feto ou da geradora, é a Irlanda, onde uma cerveja ou um uísque valem mais do que o direito a uma infância feliz e uma maternidade responsável. Com os alargamentos da Europa dos Vinte e Cinco, o clube dos fanáticos soma mais dois países-párias: Polónia (onde, não obstante, se permite ao IVG por razões de saúde) e Malta, ilha-base de cruzadas contra o Islão e os árabes do Médio-Oriente, sob as esporas e os estandartes dos cavaleiros de S. João de Jerusalém/Ordem dos Hospitalários.

Numa vista mais lata pelo mapa europeu (44 países), o Bando dos Quatro emerge como o mais obstinado ou renitente nas coisas da concepção ou da sua interrupção.

Portugal jaz entre ao mais recuados na matéria. Tratemos, pois, em 11 de Fevereiro, também por imperativos de convergência cultural, de nos aproximar da Europa das Mulheres, a quem, durante séculos e séculos, a Igreja negou o direito de ter alma (só se resignou a admiti-lo, sob o ponto de vista das proclamações formais, no séc. XIX, e a quem, ainda agora, nega o direito à consciência quando confrontada com os seus limites. Para os banqueiros, chegará a moeda como projecto de civilização; para o comum dos cidadãos, há outros valores a equacionar, a defender e a reivindicar.

Pelos elementos em presença, Portugal acha-se, pois, na só na periferia geográfica da Europa, integrando-se no Bando dos Quatro, em matéria de consideração pelos valores da família, da criança e da mulher. Pretende-se, pois, no próximo dia 11, introduzir um grau superior de compreensão da condição humana, grau que a generalidade das nações evoluídas já consagrou. Na prática, também os portugueses há muitos anos se pronunciaram pelo Sim à despenalização. Houve um referendo silencioso. Ninguém condena ninguém. Há que rematar o labor do juízo Social com a despenalização teórica, indispensável para fechar o círculo da maldição.

Mas é inadiável encerrar este capítulo negro da nossa democracia. E não é difícil: basta que não abdiquemos de ser racionais, justos e solidários. Em quadra de salve-se quem puder, a pedagogia é árdua mas recompensadora: não devemos desistir de ser humanos.









A RODA ININTERRUPTA



As datas mais consentâneas para referendar a problemática do aborto seriam o 13 e o 28 de Maio. O 13, porque sendo o Dia da Virgem, carrega toda a carga edificante para remissão da mulher portuguesa (atleta de alta competição europeia em abortos clandestinos e maternidades na adolescência); no 28, porque sendo o Dia do Aborto da Democracia, carrega toda a carga vexatória suportada pela mulher portuguesa. São duas efemérides de eleição da Direita Canónica, cuja virilidade preenche os calendários e os anais da História.

Entretanto, que fazer? Não serão as leis nem os sermões que impedirão o trabalhinho de clínica apetrechada ou de vão de escada. As leis apenas impelirão as grávidas para as habilidosas ou darão cobertura sanitária às situações de facto. Em Portugal, tende-se a mascarar o aborto, fingindo-se que se proíbe. Apenas se proíbe, como já referimos, a devida assistência aos ignorantes e aos desamparados. Seria mesmo interessante que certa Imprensa da especialidade averiguasse se figuras que se manifestam contra a legislação despenalizante alguma vez, no seio familiar ou extraconjugal, interromperam voluntariamente a marcha embrionária e fetal. Seria uma investigação paradigmática para ajudar a reabilitar a nossa democracia, minada pelas artes de furtar e do embuste.

Referendar a lei das dez semanas? Que remédio: assim o impuseram. Mas por que não referendar o flagelo da droga, lento e lesto assassino de centenas de milhar de portugueses? Por que não plebiscitar as reformas antecipadas de titulares de cargos públicos e as indemnizações aos gestores de turno? Por que não consultaram o povo sobre a interrupção involuntária do emprego, das maternidades e das urgências hospitalares? Por que não consultaram o povo sobre as privatizações, o preço das habitações ou dos automóveis? Porque não consultaram o povo para o país aderir à NATO e à EU?

O povo só é consultado para que se pronuncie a favor dos seus adversários ou para evitar embaraços ao Bloco Central de Interesses.

Não é por acaso que, no universo partidário, os adversários da despenalização do aborto são, na generalidade, adeptos da penalização das regiões. É o poder discricionário do Estado e de uma casta social sobre os úteros e sobre as terras. Não contente por dominar bancos, hipermercados, fábricas e campos, televisões e fundos europeus, a Direita ainda quer controlar as trompas de falópio.

Uma questão científica se começa, entretanto, a adensar: a pílula abortiva. E depois? Referenda-se a pílula?

Uma recomendação se o Sim contra a despenalização não vencer nesta campanha contra a Idade Média no séc. XXI: enquanto a miraculosa pílula não sofisticar os arsenais da clandestinidade, o remédio será depositar os filhos indesejados ou mongolóides na Roda da Maternidade Ininterrupta, uma Roda pós-moderna, talvez tipo Caixa Multibanco ou máquina de tabaco ou de bebidas e talvez nas imediações da residência de Marcelo Rebelo de Sousa ou do paço do bispo de Vila Real. Acolhendo, com toda a solicitude, os desvalidos (diz-se que mais de vinte, trinta ou quarenta mil por ano em Portugal, a que se juntarão entre 9.000 a 10.000 que, neste momento, são aliviados em Espanha, estes depositários genéticos da Raça albergarão um potencial demográfico capaz de fornecer toda a mão-de-obra à OTA, ao TGV e às guerras que os USA/NATO empreendam pelas terras de Maomé.

Que reforço de militância da Jihad Sexual Portuguesa!

Imaginação ao Poder!









A FILHA DO ARCEBISPO



Os eleitores vão ser chamados às urnas para referendar a lei que se propõe despenalizar a IVG até dez semanas. Não se trata de dizer Sim ao aborto, mas dizer Sim à mudança parcial de uma lei, sujeita a referendo. A lei vigente considera um crime a prática de IVG, contemplando algumas excepções que não cobrem os motivos que levam dezenas de mulheres a recorrem anualmente à decisão da IVG. A lei em vigor redunda numa disposição de terrorismo penal, como se já não bastasse o desconforto das mulheres, atiradas pela lei actual para expedientes de acrescido risco. Os adeptos do não à alteração da lei fazem gala em preservar um stock de adamastores para intimidar a incultura nativa.

A questão da penalização do aborto só foi introduzida no nosso Direito em 1852, embora seja matéria assente o seu recurso desde épocas imemoriais. A tolerância e a punição nunca foram contínuas nem universais, como, de resto, na história de todos os costumes. O que ontem foi válido ou inválido passa ao diametralmente contrário segundo as bandeiras que o sistema de interesses convida a desfraldar. Na corte de Filipa de Lencastre (1387-1415), da Ínclita Geração, uma das aias mais aconchegadas era filha de Martim Afonso da Charneca, arcebispo de Braga. Hoje, Cavaco Silva, no Palácio de Belém, acolheria, entre a nobreza serviçal, hipotéticas filhas bastardas de membros do actual episcopado?

Mudam-se os tempos e mudam-se os templos. Mudam-se as vontades e mudam-se as verdades. A vida está repleta de ilustrações de contraditório. Seriam inesgotáveis as reposições de assuntos que foram sagrados e se transformaram em profanos e que foram profanos e se transformaram em sagrados. Um dos tabus: no século XVII, ainda a Igreja proibia a dissecação de cadáveres. Perdeu mais esse conflito com a Ciência. Outro tabu: na ditadura fascista, o cardeal Cerejeira excomungou o progressista Felicidade Alves. Há anos, o cardeal Policarpo casou o ex-padre no Mosteiro dos Jerónimos. Mais outro tabu: a seguir ao 25 de Abril, o Estado legalizou o divórcio e a Igreja assinou a revisão da Concordata.

Hoje, a Igreja Católica volta a orquestrar os coros genitais. O que não surpreende: por regra, as Igrejas estão desvinculadas das grandes causas da Humanidade, agarrando-se a certos refrões susceptíveis de Espírito de Cruzada. E as problemáticas do sexo (caso do amor, da reprodução, do preservativo ou da homossexualidade) fazem saltar bispos, clérigos, irmãzinhas e brigadas de beatos na reserva. Nada causa mais alarme, febre e prazer religioso do que um debate sobre o Coito ou um referendo sobre a sua Interrupção. Se a Igreja se preocupasse assim com o Desemprego e a Fome, o Analfabetismo e a Guerra, outra seria a Política, outras seria a Economia, outro seria o respeito pelo Direito e pela Paz. Mas a Igreja quase só reage a estímulos destas partes sagradas.

Haja esperança. A Igreja Católica perderá, mais tarde ou mais cedo, a sua guerra dos embriões. A Sociedade acabará por regular este problema de saúde física e de saúde cultural. E os arcebispos, um dia, não muito longe, quem sabe, até voltarão a ter rebentos com direito a ficha no Registo Civil e a valorizar a massa crítica da Universidade Católica.









O DESMANCHO EPISCOPAL



A Igreja está, de novo, na rua a pronunciar-se sobre a interrupção voluntária da gravidez nesta parcela do planeta mergulhada na clandestinidade abortiva e na calamidade fecundativa. Tem toda a legitimidade democrática para se pronunciar como todos terão legitimidade para a contestar. Mas a Igreja Católica Portuguesa, apesar de já forçada a cedências legais e a complacências sociais, continua descompassada de outras Igrejas da Europa, coincidindo, também nesta arritmia, com o fosso que separa o país dos padrões mais modernos da pastoral e do pensamento teológico.

Direito à vida? Dos que ainda não foram paridos ou dos que são transformados em párias? E que dirão cardeais, bispos, padres, católicos e católicas anti-interrupção, falangistas do Não e também fumadores, dos riscos do fumo? Estarão a condenar o aborto por via uterina e a favorecer o aborto por via respiratória? Declara a ciência: O tabaco aumenta o risco de abortamento espontâneo, de morte do feto ainda na barriga da mãe e morte precoce logo após o nascimento. A Conferência Episcopal, na sua próxima nota aos pios e aos gentios, deverá exortar todos os seus membros a abster-se de fumar, a começar pelo cardeal-patriarca?

Quer-nos parecer que o aborto será uma das bandeiras que a Igreja deixará cair, como, ao longo dos séculos, abandonou múltiplas sanhas apostólicas. Já em 1998, numa liberalidade discreta, o Vaticano franqueou os arquivos da Santa Inquisição, violação de segredo até agora passível de excomunhão e que, durante séculos, levou cardeais, bispos, padres e outros devassadores às masmorras e à exclusão eclesial.

Entretanto, há que aprender com a Igreja a fazer amor sem preservativo nem desmancho. Evitando, claro, os pecados de pedofilia, assaz atractivos e crónicos no seio da Santa Madre.









O PERIGOSO SÉMEN DO MARQUÊS



Todos os dias se interrompe voluntariamente a gravidez sob o olhar desatento das feras judiciais e sob a complacência das esferas sobrenaturais. A questão não assume, porém, foros e desaforos de gravidade e de calamidade só porque com o delito não causa demasiado alarme social. A questão alcança inquietante nível no âmbito da saúde pública, o que também não perturba as entidades que citam exemplos europeus, sempre que convenientes e que recolhem o livrinho das citações do Bom Tsé Tung da UE, vulgo Durão Barroso, sempre que as sentenças não são inspiradas pelos grupos económicos ou pelos agrupamentos espirituais.

Por entre as falsas partidas de retoma do debate da IVG, será de situar historicamente esta complexada causa nacional, cujos protagonistas são conhecidos, uns pelo apelo ao realismo e ao humanismo, outros pelo apego a venerandas e coléricas abstracções. Todavia, as grandes abstracções não podem invocar coerência tradicional. Os defensores da tímida liberalização alvo do referendo não passam de anjinhos comparados com o espírito de tolerância da Igreja Católica que, durante séculos, integrou, na sua estratégia de prudente silêncio, o infanticídio e a roda. Os cintos e os votos de castidade jamais conseguiram bloquear os desvarios da Mãe-Pátria.

Sucede que, na actualidade, a Igreja, afoitamente na vanguarda da oposição à IVG, não logra disfarçar as incongruências científicas e as inconsistências pastorais. Com efeito, sendo adversária da Interrupção Voluntária da Gravidez, mostra-se conformada com a Interrupção Voluntária da Esterilidade. Deixa-se resvalar para o contra-senso: por um lado, avaliza actos correctivos da obra do Criador; por outra parte, consente que a relação de um casal, nimbada por um sacramento indissolúvel e pelo pacto de uma só carne, sofra a intromissão e a fecundação de sémen estranho. Um dador anónimo acaba por violar e promiscuizar o sacro reduto do matrimónio, pondo em xeque, no plano objectivo e, por muito que custe admitir, no plano subjectivo, o solene juramento de fidelidade conjugal e a verdade biológica.

Quem garantirá a qualquer bispo de Roma ou bispo de Província que tal esperma não provenha de um herege ou de um violador em série ou de um parente de José Estaline ou do Marquês de Pombal ou do profeta Maomé?

A Igreja sempre detestou perguntas. No entanto, faria bem em ponderar os reais e profundos fundamentos que levam a maioria dos chamados católicos a distanciar-se da linha oficial, autonomizando as suas opiniões sempre que não são atendidas as mais íntimas jurisprudências. Os católicos encontraram uma fórmula sacramental para se distanciarem dos furores normativos: eu cá tenho a minha religião.

Esperemos que, no referendo da despenalização, os católicos sensatos e informados do drama em causa defendam a saúde pública, a livre consciência da mulher e a decência política e cultural na sociedade portuguesa. É, de facto, necessário o voto dos católicos do séc. XXI para que Portugal vença mais um fantasma na sua lenta e penosa emancipação da Idade das Trevas.









CHEIAS DE GRAÇA



Comecemos por Portugal, terrinha fértil em coisas do etéreo. Reinava D. João V e a Fidelíssima Esposa, Mariana de Áustria, não denunciava prenhez, não tranquilizava os cortesãos. Um rei sem filhos deixa a Nação à mercê de cobiças: uns ovários de rainha valem mais do que milhares de espadas e milhentas cruzes. E quando os canhões d’El-Rei não resolvem as necessidades da rainha, eis que intervém a Ordem Celestial. No caso, a Ordem de S. Francisco, com ênfase para frei António de S. José. O arrábido propôs um negócio ao monarca: o útero real seria tocado pela Anunciação se finalmente se comprometesse a erigir um convento em Mafra.

O rei fez votos e Mariana ficou cheia. Deste primeiro parto nasceu Maria Bárbara. Ano após ano, de autêntica rajada, vieram à superfície do solo pátrio mais cinco rebentos. D. João V foi, de facto, oportunamente assessorado por um exímio traficante de influências do séc. XVIII, faltando somente apurar um pormenor que, para a Grande História, pouco contará: se o fransciscano assessorou também a rainha. O certo é que o convento de Mafra redundou no nosso mais majestoso monumento à fertilidade. Que, na altura, não era in vitro, mas in granito. Teve, portanto, Mariana uma princesa que, por consórcio, se alçou a rainha espanhola.

Ora, nem queiram saber, o que de Espanha nos vem: nem bom vento nem bom exemplo. Uma bela e prendada senhora de Mogúncia, que aos vinte anos restou viúva por passamento de Seu Nobre Senhor, foi presa de dois milagres: o primeiro, já que engravidou ao pisar uma erva ruim, calcamento testemunhado por uma donzela (ontem, como hoje, há sempre uma virgem a abonar a conduta de uma mais afoita); o segundo, já que a viúva, com a barriga cada vez mais cheia, confessou a um frade, também franciscano, a sua desdita e a sua vergonha. O monge recomendou-lhe que, de imediato, peregrinasse até Compostela, visto que, com tal adianto, só Santiago era tido por competente. Partiu de Mogúncia, navegou no Reno, repousou em Aix-la-Chapelle. Fez escala em Paris.

Em Setembro, apeava-se em Compostela e defrontava Santiago em pranto, rogando que reparasse o percalço, o embaraço, aquele incauto pisar da erva em Abril. E a viúva, naquela mesma noite, viu-se aliviada do indesejado inchaço. Regressou a Mogúncia e, de gratidão rendida, levantou ao apóstolo uma igreja em São Goar.

Afinal, sempre resta um santo advogado da Interrupção Voluntária da Gravidez. Temos muito que aprender com os caminhos de Santiago.









OS SETE PECADOS MORTAIS DO NÃO



Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Pergunta a referendar em 11 de Fevereiro


O arsenal do Não contém a habitual metralha de argumentos, alguns roçando a astúcia sofística, outros nimbados de sentimentalismo misericordioso. No nosso entendimento, merecem ser ordenados e classificados como os Sete Pecados Mortais do Não. Sempre fugindo da pergunta do referendo, pois reconhecem que é objectiva, directa, simples, clara. Sabendo que tudo têm a perder com uma abordagem no plano da legalidade e no plano da realidade, procuram interromper voluntariamente a gravidez dos cérebros. Ao objectivo respondem com o subjectivo. Ao concreto respondem com o abstracto. Ao diálogo respondem com a cólera.

Primeiro Pecado: aborto totalmente livre. É uma deturpação da pergunta referendária. Trata-se somente de expurgar da lei (Artigo 140º do Código Penal) a criminalização das mulheres que recorram à IVG nas primeiras dez semanas. Após este período, a lei continua a prever sanção penal. O refrão da liberalização não passa de uma figura de estilo verbal para radicalizar posições, tendências e convicções. Constitui um dos métodos clássicos da chamada propaganda negra.

Segundo Pecado: a imagem dos embriões que, por sistema, irrompem nas bandas desenhadas do Não quase sugerem um superman, com dentes para mastigar um cozido à portuguesa ou, pelo menos, apto a empunhar uma bandeira na barriga da mãe. Já na cruzada de 1998 se soube, nos círculos mais atentos, que o alentado candidato a nascituro fora abusivamente reproduzido de um compêndio americano, ocultando-se o estado mais avançado da gestação.

Terceiro Pecado: o amorfo vital, pelo especialista Albino Aroso comparado a uma espécie de ovo de galinha ou feijão, tem sido apresentado como um ser humano com personalidade, partindo-se deste pressuposto para tocar nas cordas sensíveis da vítima indefesa, tombada às mãos de carniceiros. Acontece que, para lá do abuso da invocação da ciência, a revisão da lei não vai provocar a interrupção de qualquer personalidade. O aborto existirá altere-se a lei ou não. Trata-se tão só e somente de introduzir uma nova escala de graduação penal e ao mesmo tempo de integrar no espaço visível (da saúde Pública) uma dilacerante situação de facto.

Quarto Pecado: os adeptos do Sim defendem o aborto. Acusação delirante: apenas propugnam e não desistem de propugnar pela despenalização da IVG até às dez semanas, advogando condições assistenciais compatíveis com os requisitos do acto e da dignidade da intervencionada. Ninguém, no seu são juízo, defende o aborto por prazer ou como método contraceptivo. Na verdade, cremos que ninguém defende o aborto, excluindo, claro, os industriais e negociantes de carne clandestina. Ficaria bem ao sector político do Não meter a mão na dita consciência. Haveria, se a honestidade ainda for tida em consideração nas suas teses, que tem sido o responsável-mor da desinformação reinante. Milhares de abortos teriam sido evitados se os seus governos em 34 anos de Regime Democrático tivessem sinceramente apostado na educação sexual nas escolas e no meio familiar e simultaneamente no planeamento reprodutivo. Mas não. O sector do Não tem sistematicamente congelado ou boicotado todos os programas. Só recoloca a sua pertinência na Agenda das Preocupações quando surge o debate público ou parlamentar da IVG. Obviamente: para desorientar indecisos e bem-intencionados-apontando uma falsa e inconvicta alternativa. Falsa, porque nunca a quis implementar nem apoiar e falsa, porque, embora tal política de prevenção continue a ser urgente e imprescindível, não soluciona quanto escapa às malhas pedagógicas e de aconselhamento.

Quinto Pecado: a despenalização provocará o aumento de abortos e o caos na rede pública hospitalar, sob o pretexto de que os serviços não se acham preparados para a nova solicitação. Ora, como se comprova pelos dados das autoridades de Saúde da Holanda e da Bélgica, com a despenalização e o estancamento das redes clandestinas e a acção educativa, a taxa abortiva retraíu-se. É possível despenalizar e diminuir a incidência do expediente interruptivo. Ora, as autoridades sanitárias já repetidamente esclareceram: as instituições estatais já atendem cerca de 1.000 casos/ano de utentes com complicações pós-aborto clandestino, pelo que até existe tradição de acompanhamento de interrupções desastradas, estando, entretanto, os responsáveis a estudar dispositivos de acolhimento de acordo com o nível de procura, no quadro de eventual aprovação da lei. Por outro lado, para além dos riscos da integridade reprodutiva da mulher ou mesmo do seu falecimento, um caso mal resolvido ocupa mais meios humanos e de diagnóstico, mais prescrições medicamentosas e maior taxa de utilização de espaços/tempo especializado do que um caso simples de aspiração. Assim, por cada entrada grave, decorrente de aborto clandestino, os serviços poderão ocupar-se de dez casos de interrupção voluntária e legal da gravidez.

Sexto Pecado: os custos, os meus impostos. O slogan economicista é uma patética demagógica consumada: tudo, de facto, tem os seus custos, desde o tratamento da SIDA ao tratamento das demais doenças sexualmente transmissíveis; desde o tratamento da toxicodependência à do tabagismo; desde os tratamentos das enfermidades do aparelho digestivo às do foro cardíaco ou mental. Enfim: é preciso estar muito carecido de argumentos para descer a um patamar contabilístico deste perfil. De resto, se alguém quisesse rebater a preocupação fiscal dos inefáveis adeptos da clandestinidade, bastaria salientar que o serviço de IVG se pagará a si próprio ao evitar que 1.000 casos graves pós-aborto clandestino deixem de entrar nas contas da Saúde Pública e ao obrigar as clínicas que assim fogem aos impostos a cumprirem com as suas obrigações. De resto, provindo tal bandeira dos impostos donde vem, só será explicável pela ausência de fundamentos sérios, procurando explorar a animosidade social contra os impostos. Aqui seria oportuno lembrar aos amigos do Orçamento de Estado: enquanto os crentes normais e os cidadãos comuns são, na verdade, massacrados com impostos, as entidades religiosas, agora em campanha, estão isentas de obrigações tributárias e ainda captam centenas de milhões de euros/ano dos nossos impostos para as suas nobres e caritativas actividades.

Sétimo Pecado: chamada, em 1998, a prestar um miraculoso contributo à causa do não, a irmã Lúcia, após sentenciar ao caminho mais estreito para o Inferno para quantos interrompessem a gravidez, convidada a recordar-se se, em 1917, a Virgem porventura teria aludido ao aborto, reconfirmou os seus dotes para a ficção: Nesse tempo não havia disso. Todavia, a palavra de Lúcia não conformou os devotos da clandestinidade e, vai daí, editaram e distribuíram, só em Janeiro de 2007, dois milhões de desdobráveis implicando a Virgem de Fátima nos segredos do aborto, pondo lágrimas a rolar nas suas faces e vaticinando, em seu nome, os mais horrendos presságios.

Haja fé.




* Escritor, jornalista

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