Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

"SIM"

Não tenho grandes dúvidas quanto ao meu sentido de voto no referendo do próximo dia 11, se por acaso pudesse exercer o meu direito visto que, após a visita de um amigo do alheio, fiquei sem quaisquer documentos.

Espectador distraído das campanhas em curso, tenho andado desgostoso com o nível rasteiro a que argumentação chegou. Já ouvi falar de prospectos mais ou menos escabrosos e, provavelmente graças a um autocolante distribuído pelo Instituto do Consumidor que tenho na caixa de correio, não tenho sido incomodado com essa propaganda indesejada.

Mas a sorte acabou. Acaba de me chegar às mãos um pequeno folheto, com os logótipos da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, da Associação Católica dos Enfermeiros e Profissionais de Saúde, do Centro de Preparação para o Matrimónio e das Equipas de Nossa Senhora com o título “10 semanas, 10 perguntas – um exercício de Amor”. No papelucho pede-se aos destinatários que respondam “em consciência e liberdade” a 10 perguntas, já que os seus responsáveis, “como cidadãos”, querem “participar na construção da Sociedade Solidária fundamentada na Cultura do Amor”, em que dizem acreditar.

O modo enviesado como as perguntas são feitas conduzem, claro está!, a um rotundo “NÃO” a todas as questões. Distorce-se a realidade do que está verdadeiramente em causa, manipulam-se os conceitos, mistura-se o que não é confundível. É propaganda da pior espécie admissível apenas num qualquer regime ditatorial. Mas ela aí está, porque a democracia – o melhor dos regimes conhecidos – também tem destas perversidades.

Para que não sobejem dúvidas, eis as perguntas em causa (utilizo o negrito tal e qual os autores do panfleto):

A uma mulher com dificuldades na vida é a morte do filho que a sociedade oferece?
Liberalizar o aborto torna a sociedade solidária?
A mulher é mais digna por poder abortar?
Uma sociedade que nega o direito a nascer, respeita os Direitos Humanos?
É maior o direito da mãe a abortar do que o direito da criança a viver?
Sem razão clínica, abortos são cuidados de saúde?
Concorda que a saúde de outras mulheres fique à espera? (para que o aborto se faça até às 10 semanas)
Aborto “a pedido da mulher”. Há filho sem pai?
Quem engravida gera um filho. Mata-se um filho?
É-se mais humano às 10 semanas e 1 dia do que às 10 semanas?

Lido o questionário, percebe-se que a pergunta levada a referendo – “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” – não conduz a nenhuma das questões suscitadas no fantástico panfleto. A única coisa que está verdadeiramente em causa é a descriminalização de um aborto em determinadas circunstâncias muito específicas.

O “SIM” ao referendo do próximo domingo não significa que a sociedade vai liberalizar a interrupção voluntária da gravidez, não nega o direito à vida, não desrespeita os Direitos Humanos, não provoca mais atrasos nas listas de espera nos hospitais e centros de saúde, nem confere mais humanidade ou dignidade à mulher.

Baralhar as ideias desta forma vergonhosa é reduzir abaixo do nível zero a seriedade com que o assunto deve ser encarado, tanto mais que o “NÃO” tem alguns argumentos intelectualmente válidos e interessantes de discutir. E é passar um atestado de incapacidade mental a quem tem o azar de tropeçar em tão desprezível opúsculo.

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