Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

sexta-feira, junho 30, 2006

No caminho da Liberdade

Tenho um camarada na Redacção do JN, que estudou Filosofia na sua juventude e que, frequentemente, diz com ar de brincadeira: “Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”. Quando se ouve o dito pela primeira vez fica-se baralhado, confuso. Mas, depois, fica-se a pensar que, de facto, uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa, são, portanto, coisas diferentes.

Vem isto a propósito do “Sonho”, do Carlos Mota. Não se trata de uma novela de ficção científica como o autor sugere na sua introdução. Pelo menos da ficção científica convencional, como nestes tempos de modernidade e novas tecnologias a visualizamos. Neste livro não há monstros metálicos, aliens, novas galáxias ou viagens inter-estelares. Nesse sentido, não é ficção científica.

Mas há homens com nomes estranhos e, ao mesmo tempo, tão terra-a-terra: o Banana, o Pneumático, o Garrafão. Gente como qualquer um de nós. São pessoas que carregam na vida sentimentos e sonhos, algumas amarguras, também, e que reflectem, de uma forma simples e directa, sobre coisas que a todos nós suscitam ou suscitaram uma reflexão.

“Nós somos um grão de areia em relação à terra, diz Dayna a Gustavo”. Há aqui que nunca tenha pensado na sua pequenez face à imensidão do Mundo, do Universo?

“Gustavo pensou um pouco, pensou alto, enquanto raspava a parede, no que levaria os homens poderosos a serem tão parecidos (ao que parecia) ao longo da História?”. Quantas vezes não dissemos, ou ouvimos dizer, que a História repete-se?

“Lutas de mulheres na lama, desportos motorizados, circo, comícios políticos, filmes de todos os tipos, noticiários para todas as cabeças”. Não é isto um pouco do retrato dos canais de televisão que nos entram pela casa e pelos olhos dentro?

“Na realidade a nossa existência não tem sentido porque temos filhos e deixa de ter se os não temos”. Uma árvore, um filho, um livro – não é esse o objectivo de vida para muitos de nós? São estas as coisas simples, faladas de um modo simples, que atravessam o “Sonho”.

São coisas do nosso dia-a-dia que, muitas vezes, nos levam a pensar que, provavelmente, há alguém, alguma coisa, acima de nós, que acaba por orientar, dirigir, planear a nossa existência. Nada de esoterismos, ou outras coisas que tais, o autor não vai por aí, ele é bem terreno nas suas cogitações.

Por isso, onde, por exemplo, seja proibido sonhar terá de, um dia, haver forçosamente um homem que resolve prevaricar. É inevitável. É o que, por regra, acontece a qualquer proibição. Proíbe-se hoje, amanhã infringe-se! É neste universo bem ao jeito de “1984” de George Orwell, num sítio onde os habitantes não sabem nem recordam a existência de jornais, que se desenvolve toda a trama de “Sonho”. Um universo onde se faz o caminho da Liberdade, com solidão, violência, tal e qual como sucede com todas as caminhadas pela liberdade, com interrogatórios e métodos de tortura à mistura, tudo porque alguém ousou pensar, sonhar, que podia emigrar e que isso podia ser bom para si. Nada de muito estranho e que não pudesse, de facto, acontecer numa qualquer ditadura da América Latina ou de África.

Como todas as histórias de luta pela conquista da Liberdade, a exaltação dos seus valores marca, de forma indelével, o “Sonho”. É aí que está o segredo desta novela. Um segredo que se traduz num percurso de conhecimento do que se somos e do que somos feitos, para onde vamos e para onde queremos ir. Tudo isto escrito da forma simples e directa possível, mesmo quando as ideias são complexas de exprimir. Um trunfo do autor que se, por acaso, tivesse um nome sonante nas nossas parangonas culturais teria, por certo, uma recepção calorosa e aplaudida.

P.S.: "Sonho", de Carlos Mota, publicado com a chancela da Papiro Editora, foi lançado, ontem, na Livraria Almedina, em Vila Nova de Gaia

1 Comentários:

Às 6:16 da manhã , Anonymous Anónimo disse...

Excelente texto, bom livro. Vale a pena ler!

Manuel Antunes.

 

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