Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

sexta-feira, maio 19, 2006

Prémio Camões


Num dia maior na vida Luandino Vieira – distinguido hoje com o Prémio Camões – repito um post de há quase um ano. Uma pequena homenagem pessoal a um escritor grande de Angola.





Canção para Luanda

A pergunta no ar
No mar
Na boca de todos nós:
- Luanda onde está?

Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos

- Xê
mana Rosa peixeira
responde?

- Mano
Não pode responder
Tem de vender
Correr a cidade
se quer comer!

«Ola almoço, ola amoçoeé
Matona calapau
Jiferrera jiferreresé»

- E você
Mana Maria quitandeira
Vendendo maboque
Os seios-maboque
Gritando
Saltando
Os pés pescorrendo
Caminhos vermelhos
De todos os dias?
«Maboque m’boquinha boa
Dóce docinha»

- Mano
Não pode responder
O tempo é pequeno
para vender!

Zefa mulata
O corpo vendido
Baton nos lábios
Os brincos de lata
Sorri
Abrindo o seu corpo

- seu corpo-cubata!

Seu corpo vendido
Viajado
De noite e de dia.

- Luanda onde está?

Mana Zefa mulata
O corpo-cubata
Os brincos de lata
Vai-se deitar
Com quem lhe pagar
- precisa comer!-

Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casas antigas
O barro vermelho
As nossas cantigas
Tractor derrubou?

Meninos nas ruas
Caçambulas
Quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?

- Manos
Rosa peixeira
Quitandeira Maria
Você também
Zefa mulata
dos brincos de lata

- Luanda onde está?

Sorrindo
As quindas no chão
Laranjas e peixe
Maboque docinho
A esperança nos olhos
A certeza nas mãos
Mana Rosa peixeira
Quitandeira Maria
Zefa mulata
- Os panos pintados
Garridos
Caídos
Mostraram o coração:

- Luanda está aqui!

Luandino Vieira, in “Cultura II, 1957, n.º 1

1 Comentários:

Às 8:08 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

Estrada

Luanda Dondo vão,
cento e tal quilômetros
mangas e cajus
marcos brancos
meninos nus

Branco algodão
crescendo
corpos negros
na cacimba

O Lucala corre
confiante
indiferente à ponte que ignora

Verdes matas
Sangram vermelhas acácias
imbondeiros festejam
o minuto da flor anual

Na estrada
o rebanho alinha
pelo verde
verde capim

Adivinhados
caqui lacraus
de capacete giz
trazem a morte

Meninos
se embalam
em mães velhas
de varizes:

Rios azuis
da longa estrada

E é fevereiro
sardões as sol
Cassoalala

Eia Mucoso
tão cheio agora
Adivinhados
permanecem
lacraus caqui
capacetes giz

Não param as colheitas

Que razão seriam
fevereiro
acácias sangrando vermelho
verdes sisais
cantando o parto
da única flor?

Não param as colheitas!

 

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