Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

sábado, maio 06, 2006

Resistir é vencer (*)


Timor vive, por estes dias, a crise política mais grave desde a independência, a 20 de Maio de 2002. Militares revoltados, violência (que, até, já resultou em mortes), medo. Parte muito significativa da população de Díli refugiada nas montanhas.

No inconsciente nacional volta a pairar a antiga preocupação do império, como se a preocupação com Timor sempre tivesse bailado na cabeça dos portugueses. Tudo conversa da treta, porque, afinal, só “descobrimos” o território em 1999, à falta de uma outra causa colectiva.

Motivo de cobiça internacional, pela riqueza do mar com que a Natureza presenteou a ilha, Timor é paradoxalmente um dos países mais pobres do Mundo. E, inevitavelmente, assim continuará a ser. Económica e culturalmente, Timor não deixará ser aquilo que já é hoje, pelo menos, para os nossos padrões de modernidade: um vazio sem perspectivas para os locais, um paraíso em estado bruto para os “malai” endinheirados.

Figura de consenso muito alargado, Xanana Gusmão tem corporizado, desde a sua libertação da cadeia de Cipinang, em Jacarta, em 1999, o sonho da construção de um país novo. O sorriso inocente e a simpatia de um homem que, afinal, é igual a todos nós muito tem ajudado.

Com o desejo manifestado pela independência, num ímpar referendo de Agosto de 1999, o trilho da história ficou marcado, depois, pela violência sem fim que manchará, para sempre, a história da Indonésia. Mas, em várias ocasiões, a simples entrada em cena de Xanana foi determinante para apagar pequenos e grandes “fogos”, para o que contribuiu, e muito, a sua histórica luta – reconhecida internamente e por individualidades acima de qualquer suspeita, como Nelson Mandela ou Bill Clinton. Cansado de uma vida de guerrilha, cansado da política e dos seus jogos de cintura, Xanana manifestou já, por diversas vezes, vontade de abandonar, na primeira oportunidade, a Presidência da República Democrática de Timor-Leste e dedicar-se aos pequenos Alexandre, Kay Olok e Daniel que a australiana Kirsty Sword lhe deu.

As situações de maior fervura, política, partidária e social, têm sido pacificadas por Xanana Gusmão. Mas, agora, o caso é diferente. Os repetidos apelos do Governo e da Presidência não foram suficientes para suster a revolta dos 591 militares expulsos das Falintil (Forças Armadas de Timor-Leste). Não evitou, segundo dados oficiais, cinco mortos e 40 feridos. Não evitou os tumultos à porta do próprio Palácio do Governo. Não evitou que elementos da Polícia Militar desertassem e se juntassem aos revoltosos escondidos nas montanhas. Não evitou a reinstalação do medo. Nem as conversações de Xanana com a Igreja Católica – a quem pediu para, nas missas de domingo, amanhã, apelar à calma e ao regresso das populações – indicam que a situação possa normalizar em breve.

E, por isso, a dúvida é cada vez mais pertinente: neste exacto momento, que papel desempenha Xanana? No seu jeito peculiar, e sem qualquer receio, mesmo em relação à sua integridade física, o presidente de Timor-Leste poderia já ter protagonizado um bom punhado de iniciativas que tranquilizasse a população. A cobiça pelo petróleo do Mar de Timor é cada vez mais intensa, as clivagens políticas no seio do próprio Governo são cada vez mais profundas, as divisões entre loromonu (da parte ocidental da ilha) e lorosae (da parte oriental) são cada vez mais evidentes, as ambições pessoais de alguns ministros são cada vez mais incontornáveis, mas ninguém como Xanana, ainda hoje, corporiza o símbolo da unidade, tanto para consumo interno como externo. E que tem feito ele? Pouco. Do que se sabe e vê, muito pouco. Nem mesmo quanto os interlocutores disseram que já só acreditavam em Xanana Gusmão.

É estranho que assim seja. Custa a crer que Xanana, com o passado que se lhe conhece, não possa ir mais além no seu trabalho de reconstrução e de coesão nacional. É estranho e doloroso. Mais ainda para os próprios timorenses, que vivem na própria carne as agruras de uma viagem que merecia melhor sorte.

* Título roubado a uma autobiografia de Xanana Gusmão

1 Comentários:

Às 2:21 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

Recordo, uma vez mais, algumas afirmações de Xanana Gusmão numa entrevista que me concedeu e que foi publicado no Jornal de Notícias em 13 de Fevereiro de 1999.

“A partir de agora não teremos mais desculpas. Temos de provar a todos, nomeadamente à Indonésia de que somos capazes. Não vamos exigir à Indonésia, ou à comunidade internacional, as responsabilidades que são apenas nossas. Teremos de ser nós a tratar do nosso destino. Temos de provar que temos capacidade e não defraudar a confiança que estão a colocar em nós”, afirmou então Xanana Gusmão.

“Todos os timorenses, estejam ou não no território, devem reflectir sobre os próximos e difíceis desafios. Reflectir de forma consciente e séria. Eu prefiro a independência. Mas não a prefiro a qualquer preço. A independência não se consegue, ou não se constrói, com um simples içar da bandeira. É preciso trabalhar muito. É preciso estar preparado. Não basta querer, é preciso saber querer.”

Orlando Castro

 

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