Viagem pelas ruas da amargura

"As viagens devem ser um instrumento à procura do fantástico,nunca o suporte de uma devoção complacente" - Baptista-Bastos

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Alegação contra uma perversidade

A esperança nunca morre, e por isso acreditei até à última que haveria um derradeiro pingo de vergonha que travasse, mesmo que in extremis, a acção que o Governo programara para 31 de Dezembro de 2006. Mas não. A decência soçobrou.

Embora ainda não tenha sido publicado no jornal oficial, são mais do que muitos os sinais de publicação iminente de um despacho assinado por um iluminado secretário de Estado com o qual pretende revogar um Decreto-Lei. Tudo aponta para que o subsistema de saúde dos jornalistas e a Caixa de Previdência e de Abono de Família dos Jornalistas tenham sido devidamente liquidados. Apenas falta o vídeo, perdão, o despacho da execução.

Porque o assunto me toca directamente – enquanto jornalista e associado da Casa da Imprensa (associação mutualista centenária que pode estar a ser alvo de um inominável assassinato de Estado) – repesco hoje um texto de Baptista-Bastos publicado aqui, a 15 de Dezembro.

A leitura é recomendada aos que também se interessam pelo assunto.



Alegação contra
uma perversidade




Nenhum dos ministros que por aí se encontram é capaz de claramente expor as intenções que os movem. As contradições do discurso governamental não pertencem às categorias da dialéctica. Correspondem, isso sim, aos domínios das malfeitorias. São golpes de rim, imbróglios e aldrabices que indignificam os princípios de Estado e causam as maiores preocupações no que resta de sociedade civil digna desse nome. Tripudiam sobre o programa de governo, apoiando-se no «pragmatismo» e na estafada afirmação segundo a qual «herdaram os efeitos da incompetência do governo anterior». Porém, com o mais desavergonhado descaramento, aplicam o «programa» quando isso é conveniente ao populismo em que se escoram.

O PS, aliás, quando se torna governo, escorraça os valores patrimoniais da Esquerda; alia-se à Direita, pactua com as mais intoleráveis ofensivas contra os indefesos; ataca o sindicalismo, persegue quem os critica, porta-se como atrabiliário déspota. A maioria absoluta, actualmente no poder, manifesta um comportamento autoritário, sustentado na trilogia: quero, posso e mando.

O verdete sempre demonstrado pelos jornalistas é histórico. Deve-se ao PS-governo o encerramento, na década de 70, dos jornais «O Século» e «Jornal do Comércio», e das revistas «O Século Ilustrado», «Vida Mundial», «Modas & Bordados». Publicações que pertenciam ao armorial da Imprensa. Centenas de jornalistas tombaram no desemprego; alguns suicidaram-se; quase todos nunca conseguiram sobrelevar a tragédia que se lhes abateu; muitos recebem, ainda, tratamento psiquiátrico. A lista é sinistra e inquietante. Teremos de chegar à conclusão de que, por fatalidade, arrogância, sobranceria ou incompetência, os socialistas não sabem governar. Os outros, também não. Mas, agora, só estamos a falar nestes.

As decisões precipitadamente tomadas para o fechamento da Caixa dos Jornalistas estão, outra vez, feridas de populismo e de inépcia. E vão arrastar o fim de uma das mais nobres instituições do mutualismo português, a centenária Casa da Imprensa. Sob a bandeira furada da «justiça social», este governo vai liquidar um edifício de solidariedade e fraternidade, apenas para lançar poeira nos olhos da população. Três criaturas vão passar à posteridade como responsáveis por esta infâmia: Correia de Campos, Augusto Santos Silva e Francisco Ramos. Eles são os rostos visíveis de um outro, até agora oculto no mutismo: José Sócrates.

Ao afirmar que vai acabar com o funcionamento de «todos os subsistemas de saúde», este governo continua a filosofia da mentira, sua característica, a par de um populismo der Carnaval, que faz de Santana Lopes apenas uma personagem burlesca. De facto, pelo menos a ADSE (Assistência na Doença aos Servidores do Estado) mantém-se - e bem! - com acordos em que participam médicos privados e estabelecimentos de saúde. Recentemente, firmou um contrato com o novo hospital privado do Grupo Espírito Santo, ainda em construção num local quase fronteiro à Casa do Artista.

O assassínio da Casa da Imprensa é praticamente inevitável. E não beneficia ninguém. O Estado irá despender muito mais dinheiro, com a liquidação deste direito, adquirido pelos jornalistas, desde 1947, e atira para o desespero milhares de profissionais e suas famílias. Os vencimentos auferidos pela maioria dos jornalistas (já o escrevi, e repito) são baixíssimos, e a Casa da Imprensa é o seu único recurso, quando doentes ou carecidos de fármacos. Aquela nobre instituição, assegurou, em 2005, mais de 12 mil consultas médicas (oito mil de clínica geral, quatro mil de especialidades); responsabilizou-se pela realização de diferentes meios auxiliares de diagnóstico, no valor de quase 300 mil euros, e possibilitou a realização de 88 intervenções cirúrgicas.

A receita dos associados da Casa da Imprensa mal chega para pagar os salários dos trabalhadores. Sem a comparticipação da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo será impossível manter o sistema de apoio aos jornalistas. Mais: deixarão de existir os pequenos subsídios que aquela instituição mutualista atribui a velhos profissionais de Imprensa, que se encontram em situação extremamente penosa.

Esta decisão governamental nada vai acrescentar, nem em termos morais nem em significação financeira, às pretensas ideias de equanimidade. É inqualificavelmente injusta, iníqua, marcada por um raivoso nivelamento por baixo, historicamente próprio de governos criptofascistas. Um deplorável lance publicitário para justificar não se sabe bem o quê. Mas recai, novamente, sobre os jornalistas - «aqueles malandros que ganham rios de dinheiro, viajam, bebem e dormem com meio mundo», conforme escreveu um pobre tolo.

Este governo tem pouco a ver com pessoas. Está mais vocacionado para os interesses privados, pessoais, materiais. As pessoas têm de entender o que está em marcha: uma ofensiva fortíssima contra o mutualismo, contra o associativismo, contra a solidariedade - que vai, exclusivamente, tocar a todos os mais desguarnecidos. Que vai favorecer as grandes instituições bancárias, de há anos preparadas para «oferecer» seguros de saúde, de vida, de reforma…

As advertências aqui feitas, as informações que habitualmente forneço não possuem, unicamente, uma defesa «corporativa». Elas comportam, em si mesmas, a alegação contra uma perversidade, que nada representa de rigoroso, de ético ou de equânime. Além do que a Casa da Imprensa é um património cultural não só da cidade, como do País, erguido pela constância de grandes nomes do jornalismo português, os quais, com total ausência de egoísmo, quiseram dar aos outros aquilo que nunca haviam tido. Este artigo é um dever de lealdade para com esses meus admiráveis camaradas.

A política mede-se pela qualidade das suas acções. E um bom governo é aquele que sabe repensar uma história tributária dos modelos que se transmitem, prolongando-se numa solidariedade cada vez mais premente. Está em jogo muito mais do que a Caixa dos Jornalistas e da ameaça que paira sobre a Casa da Imprensa. Muitos traços da nossa comum forma de viver estão a ser aniquilados, sublinhando-se a mentira monstruosa de que a necessidade impõe estas novas filiações. No imaginário colectivo, habilmente manipulado por técnicos pagos a peso de oiro, estas decisões surgem como imprescindíveis. Não o são. Como já foi largamente provado, sem que os governantes o admitissem, por demonstrada má-fé.

Os fenómenos de mimetismo reflectem-se. E aquilo que parece estar concluído, reiteradamente continua em movimento. Acabar com uma instituição centenária, mandar para situações desesperadas jornalistas que marcaram a cultura portuguesa, pode não tocar a sensibilidade de directores de jornais e de este ou de aquele catedrático pouco informado ou cabisbaixo - mas não deixa de ser uma ignomínia.

E um inconcebível desprezo pela opinião da maioria.

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